PODER-FAZER: REALIDADE
O IMPACTO DO WHATSAPP PARA SAÚDE E ENVELHECIMENTO

A política de Envelhecimento Ativo propõe que cabe ao Estado e à sociedade criar “ambientes capacitadores” que viabilzem a participação do idoso na sociedade. Ao idoso, cabe se engajar nessas oportunidades com o objetivo de se manter funcional, independente e produtivo. Isso resulta em duas contribuições para a sociedade. Por um lado, o idoso ativo que cuida da própria saúde contribui para não onerar o Estado (ônus). Por outro, o idoso ativo deve disponibilizar seu tempo como contribuição, seja no papel de cuidador preferencial de parentes mais velhos (e também de filhos e netos), seja no desempenho de atividades como o voluntariado, tornando-se recurso (bônus) e garantindo assim sua permanência na sociedade.

Nesse sentido, trata-se de assumir três trabalhos, os quais chamei de Tripla Jornada do Protagonista: o trabalho de cuidar de si, o trabalho de cuidar de parentes idosos, o trabalho de se manter produtivo. Entre eles, o cuidado de si é condição para o credenciamento para os dois trabalhos seguinte. Afinal, é o corpo saudável que é apto para o trabalho.

Como vimos aqui, a Telemedicina 2.0 e os smartphones expandem a capacidade do indivíduo de cuidar da própria saúde, empoderando-o para assumir um papel pró-ativo da própria saúde, via aplicativos de automonitoramento, buscas na internet e participação em comunidades voltadas para o tema da saúde. Entretanto, por barreiras na adoção de novas tecnologias, por limitações de literacia digital e por manutenção da deferência à autoridade médica, observou-se que esse ideal de empoderamento não se realiza para os participantes da pesquisa.

Isso não significa que os smartphones e a internet não tenham grande impacto para a manutenção da saúde e da produtividade entre esses idosos. Ao contrário, o que exploro nessa página é como o WhatsApp impacta a qualidade de vida dos participantes da pesquisa. Motivo pelo qual propus que o WhatsApp, apesar de ser um aplicativo de mensagens, é o aplicativo de saúde mais relevante entre os participantes da pesquisa.

Antes de falarmos de tudo o que o WhatsApp viabiliza, começo ilustrando como se dá a adoção desse aplicativo. Para muitos desses idosos, o WhatsApp é o aplicativo que promove sua inclusão digital e muitos deles seguirão usando prioritariamente o aplicativo, que se tornará sinônimo de smartphone. Isso não significa que o WhatsApp, por si só, não seja capaz de promover uma verdadeira revolução na experiência de envelhecimento desses idosos.

RELAÇÃO ENTRE APOSENTADORIA E USO DE TECNOLOGIAS

Um dos pontos reforçados pelo idadismo (preconceito relativo à idade) é que os idosos são incapazes ou apresentam limitações para a adoção de novas tecnologias, como a internet e os smartphones. Na perspectiva dos participantes da pesquisa, observou-se que a adoção dessas tecnologias está mais associada ao tempo de aposentadoria do que à idade em si. Esses idosos se aposentaram muito cedo por medo de uma reforma da previdência ou foram excluídos do mercado de trabalho também por idadismo. De uma forma ou de outra, muitos desses idosos se aposentaram antes da popularização dos emails, da invenção dos smartphones, do advento do Facebook e do WhatsApp.

O ambiente de trabalho, proponho, é o lugar aonde a tecnologia chega primeiro, de forma gratuita e aplicada, favorecendo seu aprendizado. Neste sentido, como ilustrado nos 3 casos abaixo, a aposentadoria precoce se mostra diretamente relacionada com a adoção de novas tecnologias.

O PAPEL DA TECNOLOGIA NAS DISPUTAS INTERGERACIONAIS

Há um consenso entre os participantes da pesquisa de que os filhos não têm tempo nem paciência para ensiná-los a mexer nos smartphones. Já os netos têm disponibilidade, mas não tem didática. Como esses idosos resumem, “eles resolvem, mas não sabem ensinar“.

A indisponibilidade dos filhos é justificada pelo tempo destinado ao trabalho e às carreiras, argumento que tem peso para esses idosos de São Paulo, já que a cultura da cidade associa trabalho a caráter. No caso de filhos adultos que ainda moram com os pais idosos, a disponibilidade para ensinar poderia ser uma contrapartida à extensão da presença na casa e aos serviços domésticos realizados pelos pais – e principalmente pelas mães, que ainda cozinham, lavam a roupa e limpam os quartos ocupados por esses filhos.

Entretanto, observou-se que a manutenção da dependência dos pais no que diz respeito à tecnologia é usada pelos filhos nas disputas intergeracionais. Nesse sentido, enquanto a casa garante a autoridade dos pais, a tecnologia confere certo poder aos filhos.

É MELHOR PROCURAR UM PROFISSIONAL

Com a falta de disponibilidade dos filhos no auxílio ao aprendizado dos smartphones, muitos participantes da pesquisa procuram cursos de smartphones e WhatsApp abertos à Terceira Idade. No campo de pesquisa onde essa tese foi realizada, esses são os cursos mais disputados entre os idosos.

Veja abaixo quais são as principais barreiras para o aprendizado e adoção dessas tecnologias, com base na minha experiência como voluntária em um curso de WhatsApp.

1. Baixa autoestima

Apesar dos idosos já chegarem ao curso como usuários básico de WhatsApp (instalado por familiares ou amigos), eles têm dúvidas sobre suas capacidades de aprendizado. Por um lado, há o senso comum de que a tecnologia é para jovens. Por outro, eles ouvem que os smartphones são intuitivos e que eles deveriam saber naturalmente o que fazer. Eles interiorizam suas dificuldades como falhas, comprometendo a autoestima que poderia resultar em confiança para tentar e em uma maior tolerância ao erro.

2. Três medos

Os alunos geralmente compartilham três medos. Medo de quebrar o dispositivo. Medo de serem taxados por um serviço que desconhecem. Medo de apagarem alguma informação importante, como as fotografias dos netos.

3. Dispositivos obsoletos

A maioria dos alunos chega ao curso com aparelhos herdados de familiares e amigos. Esses dispositivos apresentam problemas de memória e bateria que dificultam o aprendizado. Essas dificuldades do dispositivo são interiorizadas pelos alunos como falhas pessoas, contribuindo ainda mais para a baixa autoestima.

4. Interfaces pouco amigáveis

As interfaces desconsideram as necessidades específicas dos idosos. As fontes são pequenas, os comandos não são claros. Declínios naturais do envelhecimento, como o tremor essencial, dificultam a interação e geram frustração. Há especial dificuldade no controle da intensidade do toque (clicar ou “segurar”), o que pode resultar em respostas diferentes daquelas pretendidas.

5. Uma lógica estranha

A lógica dos smartphones desafia a lógica linear da escrita. Um dos hábitos observado entre os alunos é que ele usam papel e lápis para montar listas dos passos a seguir, traduzindo a linguagem dos smartphones para uma linguagem com a qual se sentem mais familiarizados.

6. Uma camada extra de estresse

Os participantes da pesquisa têm de conciliar o aprendizado com uma constante vigilância porque são alvos preferenciais tanto de roubos de smartphones quanto de golpes no âmbito online. Como um dos participantes resumiu: “se você tem cabelo branco, você já é um alvo“.

7. A centralidade do WhatsApp

Ao final do curso, não é possível afirmar que os alunos conquistaram a literacia digital. De forma geral, eles não interiorizaram a lógica do WhatsApp a ponto de replicá-la e expandi-la para outros aplicativos. Muitos cursarão as aulas por mais de um semestre. Alguns permanecerão usando prioritariamente o WhatsApp, o aplicativo com o qual mais têm familiaridade. Ainda assim, isso será o bastante para impulsionar uma verdadeira revolução na experiência de envelhecimento como vivenciada por esses idosos.

A REVOLUÇÃO MEDIADA PELO WHATSAPP

1. Expansão da sociabilidade

Geralmente um grupo de WhatsApp é aberto para cada atividade oferecida à Terceira Idade. Os grupos têm como objetivo servir de suporte para a atividade ou manter a conversa sobre um tópico de interesse. Esse grupos são rapidamente apropriados pelos participantes da pesquisa para circulação de informações úteis aos pares e para divulgação de novas atividades abertas à Terceira Idade, resultando em novos grupos com membros em comum, cujas conexões estruturam uma rede que expande as amizades na velhice. O WhatsApp também é percebido como uma companhia porque viabiliza a conexão com esses amigos em momentos de solidão.

2. O WhatsApp é uma ocupação

Há entre os participantes da pesquisa o desejo de recuperarem sua utilidade, perdida ou na aposentadoria ou em demissões decorrentes do idadismo. Compartilhar informações relevantes aos pares nos grupos de WhatsApp de que participam é uma oportunidade de se sentir útil e valorizado. O papel de curador dessas informações é desempenhado como um trabalho capaz de gerar capital social e reconhecimento junto ao grupo. Porque os grupos são conectados em rede, os conteúdos podem se tornar obsoletos ou mesmo atingirem quantidade sobre-humana. Na disputa pela curadoria de informações inéditas, é comum o compartilhamento de Fake News. Os compartilhamentos são justificados pela confiança na pessoa de quem receberam o conteúdo. Além disso, especialmente conteúdos de saúde fazem referência a um médico, instituição ou pesquisa, encontrando respaldo na deferência à autoridade médica compartilhada pelos participantes da pesquisa (essa deferência independe de escolaridade e classe social).

3. Rede de solidariedade

O WhatsApp estrutura uma rede de solidariedade entre os participantes da pesquisa quando informações e favores são trocados com base na reciprocidade. As buscas por informações confiáveis de saúde são direcionadas para essa rede, para amigos e amigos de amigos que atuam na área médica. Dessa forma, tem-se uma informação que é ao mesmo tempo profissional e informal. Essa rede de amigos também pode ser acionada para ultrapassar alguma burocracia no acesso à saúde, quando se observa a atualização do “jeitinho brasileiro” embasado em relacionamento e favores pessoais.

4. Novas geografias de cuidado

É comum entre os participantes da pesquisa que assumiram os cuidados com pais idosos a criação de um grupo de WhatsApp com os irmãos para gestão das informações e distribuição de funções em relação aos pais. Ao mesmo tempo que o WhatsApp pode ser empregado para vigilância desses idosos, essa vigilância ganha caráter de cuidado e muitas vezes viabiliza que o pai idoso ou mãe idosa continuem morando sozinhos em suas próprias casas.

5. Comunicação com a família

O WhatsApp passa a mediar a comunicação entre os membros da família nuclear na administração das tarefas diárias. Ainda que os filhos que moram com os pais sejam criticados por serem uma presença ausente, o WhatsApp promove o movimento contrário aproximando filhos e netos que moram longe, viabilizando uma ausência presente. Além disso, os grupos criados para a “grande família” resgatam a família estendida para o convívio cotidiano, incluindo tios, sobrinhos, primos, etc.

6. Interface com provedores de saúde

O WhatsApp também intermedia a comunicação com provedores de saúde, como é o caso do plano de saúde suplementar Prevent Sênior que disponibiliza o WhatsApp das especialidades médicas para seus clientes. Entre os participantes da pesquisa, a percepção é que só médicos particulares disponibilizam o WhatsApp. Quando possuem os contatos desses médicos, esses idosos tendem a preservá-lo. Primeiro porque não querem ser vistos como fardos. Segundo porque guardam essas conexões para emergências. As demandas diárias de saúde são dirigidas para os amigos da área de saúde também com uso do WhatsApp.

WHATSAPP E ENVELHECIMENTO ATIVO: CONFORMIDADE E BRECHAS

1.Disseminação das imagens do Envelhecimento Ativo

Os grupos de WhatsApp são os lugares onde os participantes da pesquisa são constantemente impactados por imagens de idosos ativos que foram bem-sucedidos no desafio de envelhecer com saúde e produtividade, celebrando a Terceira Idade como fase de liberdades e realizações pessoais. Essas imagens têm diferentes funções.

• A primeira delas é didática, disseminando hábitos saudáveis que demonstram como o envelhecimento ativo é possível (o que deve ser feito e como é possível fazê-lo).

• A segunda é aspiracional já que essas imagens funcionam como exemplos de projetos de futuro com os quais esses idosos se identificam.

• A terceira é moralizante. Ao representarem o que é um jeito “correto” de envelhecer, essas imagens também resultam na interiorização de uma falha por aqueles idosos que ainda não adotaram os hábitos saudáveis esperados deles na velhice. Uma das participantes da pesquisa usa, por exemplo, a expressão “entrar na linha” referindo-se à necessidade de aderir a esses hábitos.

Além disso, como uma nova representação da velhice, esse imaginário do idoso ativo começa a ser mobilizado pelos próprios participantes da pesquisa para o julgamento do outro e deles mesmos como idosos ativos ou como “velhos velhos”, referindo-se àqueles que não apresentam a saúde, a disposição e a felicidade que passam a ser construídas como Terceira Idade. As imagens do envelhecimento saudável (ativo e bem-sucedido) se tornam tão onipresentes que se apresentam não como um mundo desejado, mas como o único possível.

2. Demonstração da Vontade: filiação ao Envelhecimento Ativo

O exercício de envelhecer ativamente se dá pela adoção de hábitos e pelos consumos relacionados ao saudável. Entretanto, o primeiro consumo realizado pelos participantes da pesquisa é das próprias imagens que representam o ideal do envelhecimento ativo. A partir de seu compartilhamento nos grupos de WhatsApp, os participantes comunicam sua filiação ao paradigma do Envelhecimento Ativo. Isso porque, ao fazê-lo, comunicam sua sensibilização e sua vontade de envelhecerem de forma saudável e ativa. Essas imagens colaboram para a construção da identidade do idoso ativo.

Por isso, nos grupos de WhatsApp, são frequentes os compartilhamentos de conteúdos relativos à alimentação, à importância da atividade física, além da divulgação de iniciativas abertas à Terceira Idade  – estas são aproveitadas pelos participantes da pesquisa como medidas preventivas para o cuidado de si, para o aprendizado e para a sociabilidade.

O consumo e compartilhamento de conteúdos relacionados ao envelhecimento saudável são eficientes na construção da identidade e da reputação dos participantes da pesquisa como idosos ativos. Esse discurso, entretanto, não necessariamente é convertido na adesão e prática de hábitos saudáveis. Essa é uma brecha viabilizada pelos smartphones.

3. “Velho come feijoada, mas posta a foto da gelatina”

Os grupos de WhatsApp e as redes sociais em geral criam os meios para que os participantes da pesquisa possam gerenciar aquilo que tornam visível a seus pares e aquilo que mantêm no privado. Isso permite que eles continuem performando a identidade do idoso ativo no âmbito online enquanto mantêm as condutas desviantes e os consumos “irresponsáveis” na invisibilidade.

Dessa forma, usam as próprias imagens cuja função é a convocação e adesão ao envelhecimento ativo (moralidades/dever-fazer) como lastro para as práticas (vontade/querer-fazer) que poderiam comprometer sua reputação de idoso ativo e de cidadão responsável.

Essa é uma primeira resistência viabilizada pelos smartphones na convocação para o envelhecimento ativo e no processo de moralização da velhice. Como um dos participantes da pesquisa declarou, é possível continuar comendo feijoada (associada por ele a não ideal) enquanto sua reputação está resguardada pela publicação da foto da gelatina (associada a colágeno).

4. Zonas de invisibilidade para o exercício da resiliência

Os grupos de WhatsApp também viabilizam o tempo e o espaço necessários para o exercício da resiliência, como recuperação do estado saudável e produtivo. Entre os participantes da pesquisa, foi observado que, quando eles apresentam alguma fragilidade ou doença, eles podem se retirar dos encontros presenciais e podem intensificar sua participação apenas no âmbito online, por meio da participação nos grupos de WhatsApp associados a essas atividades presenciais.

Com isso, eles se resguardam do julgamento dos pares já que os declínios e fragilidades físicas podem ser usados para classificar os idosos ativos e aqueles a quem os próprios idosos nomeiam de “velhos velhos”. Enquanto nos grupos de WhatsApp os participantes podem manter a performance da identidade do idoso ativo, nos “bastidores” podem tratar da recuperação do estado saudável.

Isso contribui para uma das conclusões dessa tese de que a velhice seja silenciada em suas necessidades. Esse silenciamento, ou ocultamento de fragilidades, pode ser empregado para evitar o julgamento do outro. Além dos amigos, essas fragilidades também são ocultadas dos filhos, para quem podem servir de motivo para uma intervenção sobre os pais idosos, com cerceamento de suas liberdades. Em última instância, esse ocultamento é também da sociedade já que os declínios são usados para julgamento moral dos cidadãos que obtiveram sucesso ou fracasso na responsabilidade de se manterem autônomos.