DAS CONCLUSÕES: A CAIXA DE PANDORA

A partir da perspectiva dos participantes da pesquisa, faço apontamentos sobre os desafios, os ganhos e os “efeitos colaterais” da adoção de smartphones e da inclusão desses idosos na cultura de aplicativos (MORRIS; MURRAY, 2018). A metáfora da caixa de Pandora se apresenta com precisão a esse propósito, o que não significa, sob nenhum aspecto, a intensão de explorar o mito grego em toda sua profundidade e complexidade.

Grosso modo, Pandora foi idealizada por Zeus para punir a humanidade por ter aceitado o presente de Prometeu. Foi o fogo que Prometeu roubou dos deuses e ofertou aos homens.

Por esse feito, foi punido sendo acorrentado durante 30 anos no monte Cáucaso, quando diariamente uma águia lhe bicava o fígado. Se Prometeu havia sido castigado, ainda faltava punir a humanidade por sua ousadia em acolher o presente roubado dos deuses. Assim nasceu Pandora, agraciada com diversos dotes, de beleza única, a primeira mulher. Ela foi ofertada primeiramente a Prometeu e depois a seu irmão, Epimeteu. Aquele recusou o presente, enquanto esse sucumbiu à Pandora, casando-se com ela. Entre os dotes recebidos dos deuses por Pandora estava uma caixa que ela não deveria abrir sob nenhuma circunstância. Porém, movida pela curiosidade, ela a abriu e, ao fazê-lo, liberou toda sorte de demônios e pragas que assombram a humanidade. Pandora tentou fechar a caixa rapidamente, mas era tarde demais. Desde então, a humanidade enfrenta ganância, inveja, ódio, dor, doença, fome, guerra e morte.

A mesma narrativa pode ser usada para descrever o que acontece quando os participantes da pesquisa desafiam o estigma de que tecnologias, como os smartphones, não são para eles, idosos (mortais), sendo privilégio dos jovens (deuses). A contradição aqui é que a oferta do primeiro smartphone aos idosos geralmente é feita pelos jovens, no papel de seus filhos, sobrinhos e netos, quando esses repassam seus dispositivos obsoletos para aqueles. Entretanto, em consonância com o mito de Pandora, o presente vem acompanhado de um alerta.

Isso porque esses jovens reforçam o pressuposto de que essa tecnologia é intuitiva e que, em relação ao seu aprendizado, esses idosos devem enfrentar eles mesmos os desafios e consequências desse consumo. Desta forma, esses idosos ou são deixados à deriva (é quando eles procuram ajuda de profissionais ou de amigos) ou têm suas dificuldades relacionadas à tecnologia empregadas na criação de uma dependência em relação aos filhos – a qual é mobilizada por eles como contrapeso nas disputadas intergeracionais.

Neste sentido, inclusive, proponho que, no caso de famílias em que os filhos adultos ainda residem com os pais idosos, nas disputas de poder, a posse da casa está para os pais enquanto o domínio da tecnologia está para os filhos. Mesmo advertidos de que estão por sua conta e risco, esses idosos são movidos pela curiosidade e pelo desejo de se reconectarem a seus amigos e familiares no WhatsApp, que passa a mediar prioritariamente a comunicação entre os brasileiros (MOBILE TIME OPINION BOX, 2020). É esse desejo que motiva esses idosos a experimentarem seus primeiros smartphones.

A caixa de Pandora está aberta.

Com base nas minhas observações como professora no curso de WhatsApp dirigido à Terceira Idade, é possível propor que a primeira “praga” que esses idosos enfrentam seja o medo. Eles são de três ordem: medo de quebrar o dispositivo, medo de serem taxados por algum serviço que desconhecem e medo de apagarem alguma informação ou registro importante. A baixa autoestima é o mal seguinte, potencializada pela falta de incentivo dos filhos já mencionada anteriormente, pela inadequação das interfaces que não consideram suas necessidades específicas e pelos dispositivos herdados que apresentam limitações de bateria e de memória, sendo estas interiorizadas como limitações pessoais. Além dos medos e da baixa autoestima, eles se deparam ainda com a insegurança tanto no âmbito físico quanto digital, quando passam a ser alvos de roubos e golpes na esfera online.

Apesar do ambiente desfavorável, eles realizam o desejo de se conectar a amigos e familiares através do WhatsApp, além de verem sua rede de relacionamento expandida pelos novos grupos de WhatsApp abertos em cada atividade de que fazem parte.

Esses grupos passam a ser o canal onde acessam informações e novas oportunidades de atividades. Isso faz com que eles experimentem desconforto. Porque participam de múltiplos grupos e porque esses idosos compartilham a vontade de serem úteis a partir do compartilhamento de conteúdos pertinentes a seus pares, o fluxo de mensagens se torna não só redundante, mas sobre-humano. Ainda assim, o trabalho empregado na curadoria desses conteúdos se torna uma ocupação que funciona também como prova de caráter. Entretanto, a disputa pelo conteúdo original capaz de gerar esse reconhecimento é acirrada, o que resulta também em ansiedade. Essa ansiedade ainda pode se transmutar em constrangimento quando, na disputa do capital social de curador, esses idosos compartilham Fake News e são escrutinados publicamente por isso. Esse desconforto, essa ansiedade e esse constrangimento, concluo, não invalidam os impactos positivos trazidos por essa sociabilidade expandida.

Com relação a esses ganhos, os smartphones representam sempre a oportunidade de uma companhia. Seja na nova rede de amigos, seja na expansão das interações da família nuclear para a família estendida, há sempre alguém disponível no WhatsApp.

Além disso, o próprio smartphone passa a ser companhia, preenchendo o tempo ocioso entre um compromisso e outro com joguinhos e com o desempenho de múltiplas tarefas, o que confere a esses idosos a sensação de que estão sempre ocupados, o que é também positivo em termos de prova de utilidade. Por outro lado, entretanto, esses idosos associam o smartphone à solidão. Isso porque ao mesmo tempo que viabilizam um copresença, aproximando quem está longe, resultam na presença ausente de quem está perto – e essa crítica é dirigida particularmente a filhos e netos. Essa copresença ainda está relacionada à vigilância já que os smartphones passam a ser empregados pelos filhos desses idosos para seu monitoramento. Por outro lado e ao mesmo tempo, essa vigilância praticada sob a forma de cuidado viabiliza, em outras circunstâncias, a segurança e prolongamento da independência de idosos que moram sozinhos.

Em relação à busca de informações de saúde capazes de potencializar ainda mais essa independência, alguns idosos experimentam receio.

Além de assustados pela quantidade de informações encontradas na internet, alguns deles não se sentem seguros para avaliá-las porque não sabem em qual conteúdo confiar ­– comportamento que se mostrou diretamente relacionado com nível de formação e letramento digital, além da manutenção da deferência à autoridade médica, sendo essa independente de formação e classe social. Por conta desse receio, muitos abandonam as buscas online. No lugar delas, as buscas são direcionadas aos amigos conectados pelo WhatsApp, principalmente aqueles que trabalham na área da saúde e cuja autoridade eles reconhecem. Desta maneira, acessam informações e orientações de saúde que são ao mesmo tempo profissionais e informais. Essas solicitações estão implicadas em uma rede de solidariedade baseada na reciprocidade, cujos favores são recebidos como dádivas, que não se restringem ao âmbito da saúde, aplicando-se às necessidades diversas do cotidiano que incluem, por exemplo, o download de novos aplicativos feito por amigos.

As dificuldades vivenciadas pelo uso dos smartphones além do WhatsApp, como é o caso desses downloads de novos aplicativos, gera para esses idosos o sentimento de inadequação e de exclusão.

Como já mencionado, muitos deles interiorizam os constrangimentos gerados por interfaces pouco amigáveis ou pelos dispositivos obsoletos que herdam como uma falha ou incapacidade suas. E é preciso reconhecer novamente que esses aplicativos não consideram suas necessidades no que diz respeito a especificidades tanto física quanto cognitivas relacionadas ao envelhecimento. Como consequência, esses idosos não têm acesso a uma série de serviços vitais tanto para a saúde quanto para a participação na sociedade e usufruto de direitos como cidadãos – o aplicativo e-título é um exemplo, ao lado de todos os outros serviços públicos que passam a ser oferecidos prioritariamente no âmbito digital pelo governo.

Ao mesmo tempo, é inegável o papel que os smartphones desempenham para inclusão desses idosos, cujos efeitos se observam no consumo da cidade.

Através dos grupos de WhatsApp, como já mencionado, esses idosos divulgam e têm acesso às oportunidades de atividades abertas à Terceira Idade. E, com a utilização de aplicativos como Google Maps e Uber, expandem sua mobilidade, redirecionada para o transporte público após a aposentadoria. No caso do Uber, em particular, o aplicativo estende ainda os horários de ocupação do espaço público por esses idosos para o período da noite, quando se apresenta como solução para a volta para casa em segurança.

Como apontado até aqui, o acionamento dos smartphones “libera” males e desafios com os quais os participantes da pesquisa têm de aprender a lidar. Entretanto, esses males são compensados por ganhos que contribuem para a conclusão de que a relação desses idosos com seus smartphones é paradoxal.

Nessas negociações entre o que é positivo e negativo, falta ressaltar ainda o sentimento de angústia vivenciado por esses idosos a partir da visibilidade conferida pelos smartphones ao imaginário normativo do idoso ativo, de maneira tal que o torna onipresente. Trata-se da representação e disseminação de um ideal de idoso autônomo, produtivo, protagonista de sua saúde e bem-estar e também responsável pela criação, ele próprio, dos meios capazes de viabilizar seu retorno ao trabalho. Atrelado ainda ao discurso empreendedor que circula exemplos de idosos bem-sucedidos em sua reinvenção para o trabalho, esse imaginário é moralização, inspiração e convocação para o estilo de vida saudável atribuído ao idoso já na posição de cidadão responsável – o que na política de Envelhecimento Ativo (WHO, 2002, 2005) inclui a manutenção do corpo saudável para participação (contribuição) do idoso na sociedade, seja nos papéis de empreendedor, de voluntário ou de cuidador, já dirigidos para a informalidade e desvinculados de salário.

Essa demanda pela constante recuperação e manutenção do corpo saudável e da produtividade conduzem ao imperativo da resiliência elucidado ao longo dessa tese. É para tratar da motivação para o exercício da resiliência que retorno à caixa de Pandora.

Após desobedecer aos deuses e abrir a caixa proibida, Pandora a fechou rapidamente, mas só a tempo de capturar a esperança (MENEZES, 1985). Desde então, é essa esperança que consola os mortais, na tentativa de dias melhores, apesar dos demônios e males que assolam a humanidade.

A partir das contribuições de Swedberg (2016) para o estudo da esperança na sociedade e em sua interface com a economia, proponho ser a esperança aquilo que move os participantes da pesquisa a se empregarem no imperativo de resiliência visando a recuperação da autonomia e da produtividade.

Essa é a conclusão seguinte dessa tese: o idoso ativo (em geral) e os participantes da pesquisa (em particular) são capturados pela esperança de que envelhecer “bem”, com saúde, produtividade e autonomia é possível.