DAS CONCLUSÕES: A ESPERANÇA QUE MOVE A VELHICE
A partir das contribuições de Swedberg (2016) para o estudo da esperança na sociedade e em sua interface com a economia, proponho ser a esperança aquilo que move os participantes da pesquisa a se empregarem no imperativo de resiliência visando a recuperação da autonomia e da produtividade. Além disso, reitero a hipótese de que os smartphones viabilizem espaços de inconformidades. Neste caso, a visibilidade conferida à esperança de recuperação da saúde ou de reabilitação para o trabalho passa a funcionar como lastro para a identidade do idoso ativo. Seja na conformidade ou na resistência, essa esperança é mediada pelo consumo de smartphones e redes sociais, com destaque para o WhatsApp, o que significa reconhecer sua influência sobre aquilo que é objeto e finalidade da esperança.
Sobre a moralização daquilo que se deseja tornar realidade.
Swedberg (2016) propõe que a esperança seja entendida como “o desejo que algo se torne realidade”. Seu conceito, como argumenta, é composto de três partes: o desejo (vontade), que algo (objeto do desejo), torne-se realidade (plano do concreto realizado). Neste sentido, ressalta que a esperança não existe como sentimento em si mesmo, mas se manifesta atrelada a algo. Consequência disto, propõe que haja uma dimensão social na esperança, cuja relação se manifesta na eleição daquilo que se deseja e na possibilidade de sua realização, visto que esta se dá em sociedade e na interação com pessoas, instituições e recursos. Assim, aquilo que se deseja é influenciado pela sociedade, pelo grupo a que pertence aquele que deseja e pela cultura do consumo. Com relação à possibilidade de realização daquilo que se deseja, o autor aponta para a influência do capital econômico, social e cultural do ator que deseja (que tem esperança), de oportunidades econômicas estruturais e de instituições econômicas e recursos materiais.
O ‘algo’ que se deseja realizar na velhice.
A partir da perspectiva dos participantes da pesquisa, proponho que a esperança que move os participantes da pesquisa sejam de duas naturezas. Primeiro, deseja-se a constante recuperação e manutenção do corpo saudável (objeto do desejo) a fim de concretizar a experiência de autonomia e liberdade. Segundo, deseja-se retornar “à ativa”, o que significa desejar a recuperação das condições de trabalho, associado por esses idosos ao caráter e à utilidade.
Na prática, esse trabalho pode ser empregado no autoconhecimento e autodesenvolvimento ou pode assumir a forma de empreendedorismo ou voluntariado. Esses dois últimos reforçam inclusive a dimensão social da esperança uma vez que este visa a retribuição para a sociedade enquanto aquele visa a sua transformação, sendo ambos desempenhados com a finalidade de melhorar a realidade como dada.
Qualquer que seja a forma desejada de trabalho, a realização desse desejo está condicionada à realização do desejo de manutenção da saúde, já que o corpo apto para o trabalho é o corpo saudável. Ambos os desejos podem ser condensados no desejo de ser protagonista da própria velhice, o que não se dá descolado da construção de que o idoso deve desejar ser protagonista de sua saúde e envelhecimento.
O que influencia esse ‘algo’?
Na perspectiva da esperança proposta por Swedberg (2016), a convocação dos participantes da pesquisa para que desejem ser “ativos” se daria a partir de outros mecanismos: o grupo social a que pertencem e a cultura de consumo. Com relação ao grupo, faz-se relevante o pertencimento ao grupo de idosos associado à Terceira Idade. No âmbito da saúde, a Terceira Idade está em oposição ao grupo onde estão os “velhos, velhos”, dependentes e debilitados. No âmbito do trabalho, a Terceira Idade está em oposição ao grupo dos aposentados estigmatizados como desocupados e inúteis e cuja inatividade é particularmente associada à falta de caráter em São Paulo. O desejo por filiação à Terceira Idade implica não só a identificação, mas a conformidade ao ideal de idoso jovial, no sentido de disposto, saudável e produtivo.
Essas características são justamente as virtudes que passam a compor o imaginário disciplinador, moralizante e onipresente do grupo dos idosos ativos da Terceira Idade. A cultura do consumo reitera esse imaginário e responde a ele com a oferta prescritiva de estilos de vida que prometem realizá-lo via consumo (SLATER, 2002). Este consumo não é o da mercadoria em si, mas daquilo que ela simboliza (FONTENELLE, 2017). Esse simbólico é mobilizado para fins distintivos, comunicando algo que, como elucidei, pode cair como uma luva ou mesmo aderir como uma pele (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004), credenciando esses idosos para algumas permissões e não outras.
No caso dos participantes da pesquisa, a identificação e a filiação ao imaginário do idoso ativo se dão a partir do consumo das atividades dirigidas à Terceira Idade, de hábitos saudáveis, de conteúdos relacionados à saúde ou aos próprios exemplos de idosos bem-sucedidos que circulam na mídia e nas redes sociais. Entretanto, como proponho, mais importante do que o consumo em si é a visibilidade dada a ele, que funciona localmente como prova de caráter, mesmo que se trate do consumo de uma representação (denotativa do desejo de envelhecer bem) que não se concretize em práticas saudáveis.
Nesta perspectiva, os smartphones, via redes sociais e grupos de WhatsApp, assumem dupla função. Ao mesmo tempo que viabilizam os consumos associados ao ideal do idoso ativo, conferem visibilidade a esses consumos. Ao ganhar visibilidade, esses consumos também se abrem como possibilidade de consumo para terceiros (PEREIRA, 2016), reforçando o ideal do idoso ativo e retroalimentando a esperança de que envelhecer bem é possível. Nesse mecanismo consumo-visibilidade-consumo-visibilidade, o envelhecimento ativo ganha tamanha onipresença que não se apresenta mais como possibilidade desejável, mas como o único mundo viável.
Da viabilidade de se realizar aquilo que se deseja.
A viabilidade daquilo que se deseja esbarra na possibilidade concreta de sua realização (capital econômico, social e cultural daquele que deseja). Ao longo dessa tese, foi evidente como fatores como grau de escolaridade, literacia digital e poder aquisitivo determinam o acesso à saúde (seja em informação, seja em serviços, seja no consumo de alimentos saudáveis) capaz de viabilizar a autonomia desejada na velhice. Poder aquisitivo e tipo de trabalho desempenhado como profissão também se mostraram determinantes da qualidade de vida na velhice e da urgência ou não do emprego em atividades complementares à aposentadoria ou substitutas do trabalho formal.
Ainda que poder aquisitivo, escolaridade e tipo de trabalho desempenhado ao longo da vida se mostrem influenciadores da qualidade de vida na velhice, tanto o paradigma do Successful Aging (ROWE; KAHN, 1997) quanto a política de Envelhecimento Ativo (WHO, 2002, 2005) reiteram que o envelhecimento saudável (bem-sucedido ou ativo) é algo que aquele que deseja envelhecer bem pode realizar. É, portanto, ignorando essas desigualdades e compensando-as com a vontade do indivíduo que a meritocracia na saúde e no envelhecimento equipara o sucesso na manutenção e recuperação do estado saudável e produtivo, posto como dever, à intensidade do querer, no sentido de desejar e agir de forma a realizar esse objetivo.
Da mesma forma, equiparam o fracasso nesse projeto a uma falta de vontade, o que equivale a dizer a uma falha moral. Entretanto, é preciso reconhecer que, antes de se lançar ou não à realização desse objetivo, antes de ser bem-sucedido ou fracassado nele, o idoso ativo é aquele que essencialmente foi capturado pela esperança.
Esperançoso, aceita que deve desejar e deseja que a manutenção e correção do corpo saudável e produtivo seja realizável. É nessa perspectiva que proponho que o imperativo da resiliência alimente a esperança que move a velhice em Bento. Mais do que isso, proponho que o idoso ativo se constitua como resiliente.