DEVER-FAZER: MORALIDADES E DISCURSOS

Nesta tese, o Dever-Fazer aborda o plano das estratégias que diz respeito aos discursos, políticas e representações que colocam a velhice sob administração, definindo um jeito correto de envelhecer.

“Nem bengalistas, nem maratonistas,

queremos ser protagonistas”

PARTICIPANTE DA PESQUISA

A fala de um dos participantes da pesquisa sinaliza a negação de dois paradigmas com os quais não se identifica. De um lado, o paradigma do idadismo (bengalistas), do outro lado, o paradigma da performance (maratonistas).

Cabe então perguntar:
1) O que permite que o participante da pesquisa se nomeie como protagonista?
2) O que quer dizer ser protagonista na velhice?
3) Quais os impactos dos smartphones no desejo e na prática de ser protagonista?

O que permite que o participante da pesquisa se nomeie como protagonista? A proposta da análise de discurso.

A partir da Análise de Discurso de Linha Francesa, Pêcheux (2014) propõe que a tomada de palavra se dê em meio a discursos que lhe são anteriores. Para o autor, a ilusão de autonomia (“queremos ser protagonistas”) se dá por um mecanismo de imposição e dissimulação na qual o indivíduo é interpelado pela ideologia, sem percebê-la.

É preciso, portanto, recuperar qual é a ideologia e quais são os discursos que interpelam o participante da pesquisa a querer ser protagonista e nenhuma outra coisa.

Essa construção do idoso como protagonista é recuperada a partir de documentos internacionais que visam a velhice e a constroem como problema a ser administrado pelo Estado e gerido pelo cidadão.

1982 Plano de Viena (UN)

• Primeiro instrumento internacional para formulação de políticas para o envelhecimento
• Alerta para o envelhecimento populacional mundial
• O contingente idoso é visto como risco para o desenvolvimento
• Início da terceirização da responsabilidade sobre a velhice para outros atores sociais
• Convocação para produção de conhecimento científico para gestão da velhice

Termos: sérios problemas, ameaçam, impactos, mitigar, efeito negativo, dramático, taxa de dependência, triste paradoxo, fardo, consequências negativas

1997 Successful Aging

• Fornece o saber científico para gestão da velhice
• Novo paradigma de saúde na velhice: ausência de riscos de doenças
• Atesta que a recuperação do estado saudável e produtivo na velhice não só é desejável mas possível a partir da adoção de hábitos saudáveis
• Conceito de Resiliência: a rapidez e eficiência de recuperação do estado saudável na velhice
• O sucesso na manutenção do estado saudável depende da vontade do indivíduo
• Moralização da velhice já como meritocracia

Termos: baixa probabilidade de doenças, alta capacidade funcional, participação ativa na vida, evidências, evitáveis, modificáveis, reversíveis, estilos de vida, bem-sucedida, síndrome, melhorar, otimizar, superar, encorajador, positiva, rapidez, eficiência, ativos, produtivos, critérios de sucesso, plasticidade, resiliência

2002 Plano de Madri (UN)

• Sociedade para todas as idades: “todas as idades” engajadas na viabilização de uma sociedade sustentável
• Contigente idoso é tratado como recurso
• Cabe à sociedade criar oportunidades para o envelhecimento saudável
• É responsabilidade dos indivíduos manterem um estilo de vida saudável
• Terceirização da responsabilidade sobre a velhice para outros atores sociais
• Convocação da mídia para propagação de uma visão positiva do envelhecimento
• Empoderamento/capacitação do idoso para participar da/contribuir para a sociedade
• Promoção do autocuidado, monitoramento e otimização da própria saúde

Termos: todas as idades, recurso, visão positiva, drenos para a economia, promoção de imagens, requer esforços, ambientes capacitadores, responsabilidade dos indivíduos, estilo de vida saudável, bem-sucedidos, oportunidades, potencial, empoderar, contribuírem, participarem, hábito saudável, mais alto nível possível de saúde, conquista, autocuidado, monitorarem e otimizarem suas próprias saúdes.

2002 Envelhecimento Ativo (2002)

• Autonomia e participação como contrapartida para gastos (saúde/aposentadoria)
• Cabe à sociedade/Estado criar “ambientes capacitadores” para “apoiar” e “encorajar” o envelhecimento saudável
• Ajudar pessoas a permanecerem “independentes” e “ativas”
• O cuidado com o idoso é direcionado para “os mais velhos”
• O envelhecimento ativo é direito e dever
• Manter-se saudável para se manter produtivo
• Participação é equiparada à manutenção da contribuição ativa do idoso
• Essa contribuição visa “compensar” os custos de saúde e previdência
• Orientação do idoso para trabalhos voluntários, informais ou não remunerados
• Convocação dos próprios idosos para propagação de uma visão positiva do envelhecimento

Termos: ajudar, encorajar, apoiar, oportunidades, ambientes de suporte e capacitadores, cuidado aos outros, falência de nossos sistemas de saúde e previdência social, caras, custos, demandas, montante desproporcional, independentes, ativos, promoção de saúde, políticas de prevenção, equilibrar o papel da família e do estado, cuidar da própria vida, continuar a contribuir ativamente, não remunerada, atividades voluntárias, responsabilidade.

O IDOSO ATIVO COMO PROTAGONISTA

Ao idoso ativo cabem três contribuições para a sociedade que são condição para a manutenção de seu status de bônus:
1. Pilar Saúde: cuidar da própria saúde, mantendo-se independente e funcional
2. Pilar Segurança: assumir o cuidado com familiares idosos dependentes
3. Pilar Participação: manter-se produtivo, mesmo em modelo informal/não remunerado

3 CAMADAS DE MORALIDADES

É preciso contextualizar os textos que visam a gestão da velhice em um panorama macro econômico global e em um contexto cultural local de São Paulo. Disso resultam 3 camadas de moralidades.
Terceirização dos cuidados com saúde e bem-estar para o cidadão (biocidadania)

Construção do idoso como protagonista de sua saúde e envelhecimento

Construção da identidade de São Paulo como cidade para o trabalho

ESPECIFICIDADE DO CASO BRASILEIRO

Na tradução do documento Active Ageing: a Policy Framework para o português em 2005 e sua incorporação na atualização da Política Nacional de Saúde do Idoso em 2006, é possível identificar um deslocamento de significado do termo ativo. No texto original em inglês, ativo diz respeito à participação do idoso na sociedade como protagonista de sua saúde e envelhecimento.

No texto em português, ativo foi aproximado de saudável, com saudável sendo aquele que se mantém em atividade, com destaque para atividade física, como elucidado desde a capa do documento.

No documento em inglês, as mãos simbolizam um aplauso que reitera o envelhecimento como uma conquista. No documento em português, a capa traz uma figura humanoide durante prática de atividade física.

A ADEQUAÇÃO À MORALIDADE LOCAL

A aproximação do termo ativo como aquele que se mantém em atividade responde à moralidade local de São Paulo de que o cidadão, mesmo o idoso,  mantenha-se útil e produtivo (em atividade). Entre os participantes da pesquisa, é comum que eles frequentem diversas atividades abertas à Terceira Idade no campo de pesquisa. A visibilidade conferida a essa participação funciona como prova de que estão ocupados e produtivos.

A ociosidade é vista como falha moral e o trabalho é visto como prova de caráter. Por isso, os participantes da pesquisa falam com orgulho que não têm tempo porque estão comprometidos com diversas atividades (eles se referem a essas atividades como “compromissos” que executam com a seriedade de um trabalho). Como desdobramento dessa moralidade local, os participantes da pesquisa que estavam desempregados (ainda não elegíveis para a aposentadoria), quando perguntados sobre trabalho nessa fase da vida, preferiam a expressão “não estou trabalhando no momento”, ressaltando o caráter provisório de sua condição.

Nesse sentido, uma das conclusões dessa tese é que a política de Envelhecimento Ativo cai como uma luva para os participantes da pesquisa porque responde às suas necessidade como cidadãos de São Paulo de se mostrarem produtivos e úteis.

DE QUE TEXTOS OS PARTICIPANTES DA PESQUISA SÃO LEITORES?

Os participantes da pesquisa não são leitores desses documentos voltados a gestores de políticas públicas. Eles são atingidos por outros textos, midiáticos, que inserem no cotidiano o modo de pensar a velhice como nomeado nesses documentos. Dois textos foram usados para analisar como esse discurso ganha o cotidiano.

• Filme publicitário do plano Prevent Sênior (2017)

Pela relevância do plano entre os participantes da pesquisa que se mantiveram no sistema de saúde suplementar após a aposentadoria.

• Documentário Envelhescência (2015)

Por se tratar de um conteúdo constantemente compartilhado e referenciado pelos participantes da pesquisa.

O que esses textos têm em comum?

• Exploram a Terceira Idade como fase de liberdades e realizações pessoais condicionadas à manutenção da saúde.
• Reiteram que envelhecer bem é uma escolha individual que depende da vontade.
• Mobilizam exemplos de idosos que superaram as limitações do corpo e da idade: o ciclista, a turista, o nadador, a tatuada, o pára-quedista, o maratonista, a surfista, o formando aos 80.
• Ambos os textos acionam o discurso de autoridade para atestar que uma velhice ativa é possível.
• O Documentário Envelhescência (2015) explora a questão da resiliência como recuperação do estado saudável e produtivo, como no exemplo do professor de Aikidô que continua dando aulas mesmo depois de uma lesão no fêmur.

A PROLIFERAÇÃO DAS IMAGENS E SUA POTÊNCIA NORMATIVA

Imagem didática, imagem convocatória, imagem moralizante

A partir do consumo e compartilhamento das imagens que retratam o idoso ativo em suas redes sociais, os participantes da pesquisa assumem o papel de propagar exemplos do envelhecimento ativo como proposto pela política de Envelhecimento Ativo.

A disseminação dessas imagens atua na construção do imaginário da velhice ativa que resulta em um novo parâmetro que passa a identificar um jeito correto de envelhecer. Ganhando onipresença, esse parâmetro passa a ser usado como referencial para o julgamento daqueles que foram bem-sucedidos ou que fracassaram na gestão da própria saúde e envelhecimento.

Entre os participantes da pesquisa, essas imagens podem resultar em culpa com relação ao passado e ao presente, na constatação do que eles “já deveriam” estar fazendo. Com relação ao futuro, essas imagens assumem função aspiracional. É com elas que os idosos passam a se identificar.

Consumo e filiação ao discurso do Envelhecimento Ativo

Ao compartilharem essas imagens, os participantes da pesquisa comunicam que estão sensibilizados para o envelhecimento ativo e que se identificam com ele. Esse consumo é, por isso, o modo como dão visibilidade à filiação ao discurso do envelhecimento ativo. Como propõe a análise de discurso, é nessa tomada de posição que o sujeito se constitui no assujeitamento à ideologia que lhe interpela à ação.

A produção e compartilhamentos dessas imagens funcionam como a prova da vontade de envelhecer ativamente. Mais do que isso, essas imagens funcionam como lastro para a identidade do idoso ativo, abrindo espaço para comportamentos desviantes e consumos irresponsáveis que são mantidos longe da visibilidade das redes sociais.

 

Essa é uma das principais conclusões dessa tese: os smartphones e redes sociais criam uma brecha para inconformidades e resistências sem comprometer a reputação do idoso ativo. Na tese, trabalhamos essa tática como uma brecha na imagem.

Como as imagens que deveriam enquadrar a velhice (DEVER-FAZER)
são apropriadas pelos participantes da pesquisa
como lastro para comportamentos desviantes e consumos “irresponsáveis” (QUERER-FAZER)?