APONTAMENTO FINAL: O DESCARTE DO INÚTIL DEPENDENTE

O descarte do dependente e inútil é a entrada para o apontamento final dessa tese. Para tanto, retomo o percurso de Arendt (1988) até sua conclusão de que o trabalho na sociedade moderna se constitui como condição humana visto que é vínculo e credenciamento para o estar no mundo. Neste sentido, no incessante fazer, o sujeito se constitui na realização da condição de sua existência. Consequência disso, como propõe a autora, há uma reorientação para a vida prática quando a vida contemplativa e política, enquanto improdutivas, tornam-se inviáveis na sociedade que passa a se estruturar a partir de provas de utilidade. Essa reorientação já não é, entretanto, para a “Vita Ativa” conceituada por Arendt em seus fazeres que viabilizam a existência, criam senso de pertencimento e transformam a realidade até materializarem a existência histórica.

Para ela, também a “Vita Ativa” foi reduzida ao processo, a fim de otimizar a produtividade condicionante da vida em sociedade. É nela e para ela que o homem se constitui, também reduzido, como animal laborans.

Essa produtividade condicionante também pode ser observada na política de Envelhecimento Ativo. Sua proposta é justamente prolongar a permanência do idoso na sociedade de todas as idades na posição de bônus (atrelada à continuidade de sua produtividade), reorientando seu tempo ocioso ou improdutivo para os trabalhos que, como propus, resultam em uma tripla jornada para o idoso protagonista que se emprega na produção de provas que lhe atestem utilidade e valor. 

O HOMO RESILIENS É ANIMAL LABORANS

É preciso reconhecer que o Homo resiliens é essencialmente animal laborans. Essencialmente, mas não integralmente. Neste sentido, são as particularidades daquele em relação a este que elucido a seguir. Como propus, a resiliência é a principal virtude do idoso ativo cujos esforços estão direcionados para a recuperação da autonomia e de seu potencial produtivo. Entretanto, os participantes da pesquisa demonstram que não se trata apenas da reabilitação para o trabalho, mas do esforço empregado na recuperação dos meios e oportunidades para que o trabalho na velhice se torne possível.

Desta maneira, observou-se que esses idosos se tornam protagonistas também nesta demanda, viabilizando, eles mesmos, novas ocupações já no papel de empreendedores. Junto a eles, os voluntários, além de se empregarem em oportunidades que já existem, criam, eles também, novas ocupações para si a partir da proposta de novas atividades que expandem o portfólio dirigido à Terceira Idade.

Consequência disto, empreendedores e voluntários não estão apenas empregados no exercício da ocupação capaz de lhes fornecer as provas de utilidade que lhes credenciam para a permanência na sociedade de todas as idades (bônus) e na sociedade local, onde caráter e identidade são cunhados pelo trabalho. Ao contrário, esses idosos trabalham também sobre a estrutura, criando novas ocupações e espaços que viabilizem seu retorno ao trabalho além daquele como cuidador de familiares, filhos ou netos, como sugerido pela política de Envelhecimento Ativo (WHO, 2002; 2005). 

TRABALHO NÃO É SÓ CONDIÇÃO: É PROPÓSITO

É nessa articulação que, para os participantes da pesquisa, trabalho não é só condição como propõe Arendt (1988), mas propósito. Para esses idosos, a consciência da finitude da vida (proporcionada pela vivência da morte de amigos e parentes) e o balanço do passado (da carreira, da família) resultam em uma reorientação para o presente. Consequência disto, é na retomada do fazer, incessante e diário, que encontram o propósito da vida, já transmutado no desejo de viverem a vida prática com propósito – o que significa recuperar a produtividade capaz de conferir-lhes utilidade, dignidade e respeito.

Como Swedberg (2016) propõe, entretanto, esse desejo se constrói em sociedade, o que significa que essa vontade (querer) não é livre das influências sociais (aquilo que se deve querer). E aqui, novamente, condição e propósito retomam o argumento desta tese de que o querer na velhice se dá na articulação com o dever. Para esses idosos, essas influências são três:

1) a moralidade local consequente da associação entre trabalho à caráter em São Paulo
2) a moralidade constituída pela política de Envelhecimento Ativo que enquadra a velhice em termos de autonomia e produtividade
3) a moralidade constituída nas sociedades neoliberais que enquadra o cidadão no exercício de uma biocidadania

Ainda assim, esses deveres são dissimulados no discurso a tal ponto que, na filiação a eles, esses idosos emergem como sujeitos já na ilusão de protagonistas do seu querer (PÊCHEUX, 2014).

É neste sentido que proponho que, para o Homo resiliens, trabalho não seja só condição, seja propósito.

Da mesma forma, proponho que seu emprego no incessante fazer não seja alienação (ARENDT, 1988), mas política. Política esta implicada na ampliação e renegociação do espaço reservado à velhice na sociedade, o que inclui seu retorno ao trabalho – já reorientado para seus próprios interesses na posição, ainda que ilusória, de sujeitos-protagonistas.

Em contraposição à política de Envelhecimento Ativo, que é do campo da estratégia, esta é uma política “de baixo” (PYPE, 2017), resultante de práticas e consumos do campo das táticas (DE CERTEAU, 2014).

Uma política que se presta à estética, nas disputas de como a velhice é representada e para quem se torna visível (RANCIÉRE, 2006), e à ética, como reformulação de suas permissões e expectativas (BOURDIEU, 1993), com efeitos para aquilo que se apresenta como o bom, o correto e o possível para esses idosos.

De certo modo, o incessante fazer como política inclui o fazer por si e o fazer por todos.

Trata-se do legado a que se referiu uma das participantes da pesquisa. Neste sentido, o incessante fazer é empregado na recuperação da velhice como um todo a fim de lhe tornar habitável. Entre o querer e o dever, essa é a reinvenção da velhice para a qual trabalha o Homo resiliens. É no desejo de que uma nova forma de envelhecer em sociedade se torne realidade que reside a esperança que lança esses idosos, agora conectados, à ação.

“Juventude é só uma palavra”

Como argumenta Bourdieu (1993), a juventude é só uma palavra, assim como o é a velhice. Juntas, porém, elas definem um sistema de expectativas e permissões, que se constitui enquanto disputa em um tempo e em um espaço.