DAS CONCLUSÕES:
O PROTAGONISMO ENTRE O DEVER E O QUERER
A escolha metodológica dessa tese foi pela elucidação das táticas adotadas pelos participantes da pesquisa, e mediadas por seus smartphones, em seus projetos de envelhecimento, bem como suas articulações (conformidades, ajustes, resistências) com as estratégias definidas por políticas públicas, que estabelecem moralidades acerca de um projeto maior que é o projeto para manutenção do contingente idoso na sociedade a partir do prolongamento de sua posição de bônus.
Isso significa o acionamento de imagens e discursos capazes de construir um novo ideal de idoso, comprometido com o cuidado de si, implicado como cuidador preferencial de familiares e disposto a se manter produtivo (o que chamei de Tripla Jornada do Protagonista), canalizando seu tempo para o trabalho, mesmo que como voluntário ou empreendedor.
Esse imaginário é prescritivo de um Dever-Fazer oferecendo modelos aspiracionais e condutas sobre um jeito correto de envelhecer que se abre ao consumo. É com esse Dever-Fazer que o querer vai dialogar, sendo influenciado por ele.
A gestão de si como moralidade não é, entretanto, exclusividade da velhice. Esse Dever-Fazer está implicado em um discurso maior, de biocidadania, quando as obrigações sobre a gestão da saúde e do bem-estar são terceirizadas para o cidadão responsável, o biocidadão.
Considerei o ‘idoso ativo’ e o ‘biocidadão’ como camadas de moralidades que se sobrepões. A elas, no caso dos participantes da pesquisa, soma-se o ‘Dever-Fazer’ enquanto cidadão de São Paulo. Historicamente, a identidade de São Paulo é construída a partir da glorificação do trabalho. O trabalho é o elemento unificador dos migrantes que habitam a cidade. É fonte de respeito e é também aquilo que confere senso de pertencimento e cidadania.
Três moralidades implicadas na gestão da velhice em São Paulo.
Juntas, essas três camadas de moralidades (do biocidadão, do idoso ativo e do cidadão de São Paulo) constituem o Dever-Fazer a que se assujeitam os participantes da pesquisa. Mas esse dever é mais do que uma imposição. Ele constitui o mundo que rodeia esses idosos, é posto não só como o correto, mas como o natural. Como resultado, moralização e sua naturalização interpelam os participantes da pesquisa a quererem aquilo que se espera deles, ainda que esse assujeitamento seja “esquecido” e que essa força exterior seja experimentada como a expressão de suas vontades como sujeitos (PÊCHEUX, 2014).
Ao longo dessa tese, observei como os smartphones, as redes sociais e particularmente os grupos de WhatsApp colaboram para a disseminação de discursos que traduzem o Dever-Fazer dos textos das políticas analisadas para o cotidiano. Consumir esses conteúdos e compartilhá-los comunica o Querer-Fazer aquilo que deve ser feito.
No âmbito da velhice, isso significa dever se manter saudável, independente e autônomo de maneira a não ser ônus para a sociedade.
Além da função didática das redes sociais na demonstração de como praticar o envelhecimento saudável que se deve querer, em teoria, os smartphones expandem o ferramental para essa empreitada. Isso porque, na perspectiva da Telemedicina 2.0, empoderam os idosos (e não só eles) para assumirem o papel central em um sistema participativo de saúde, via uso de aplicativos de automonitoramento, via buscas e construção colaborativa de conhecimento na área de saúde, via a otimização do acionamento de recursos dos sistemas de saúde.
A partir da perspectiva dos participantes da pesquisa, observou-se o uso irrelevante desses aplicativos de monitoramento e mesmo dessa autonomia na busca de informações para a tomada de decisões sobre a própria saúde. No lugar desses aplicativos e das buscas online, entretanto, o WhatsApp é amplamente utilizado para o acesso à saúde, estruturando não só uma rede de cuidados, mas uma rede de informações de saúde centrada em amigos que trabalham na área médica. O resultado é uma rede de favores baseada na reciprocidade que não emancipa, mas responde às necessidades cotidianas dos participantes da pesquisa.
Os grupos de WhatsApp ainda desafiam as expectativas acerca de um Dever-Fazer na velhice em um segundo aspecto.
Ao mesmo tempo que eles abrem o espaço para a performance da identidade do idoso ativo comprometido com a saúde e a produtividade (conformidade), elas criam zonas de respiro, os bastidores, onde os participantes da pesquisa podem se lançar a condutas “não saudáveis” ou a “consumos irresponsáveis” (resistência). Da mesma forma, esses bastidores são espaços onde os participantes da pesquisa podem se resguardar quando apresentam algum declínio ou fragilidade de maneira a não comprometer suas reputações de idoso ativo, saudável e produtivo.
A partir dessas observações, retomo as quatro hipóteses dessa pesquisa para elencar as primeiras conclusões dessa tese.
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RETOMANDO AS HIPÓTESES DA TESE
01
As aspirações e consumos propostos pela política de Envelhecimento Ativo estão a serviço de um ideal de idoso cuja identidade é cunhada em termos de saúde. Essa conclusão apresenta uma especificidade porque pode ser generalizada para além dos participantes da pesquisa. Isso porque se baseia na análise de documentos que são diretrizes globais cujos efeitos são observados na representação da velhice não só no Brasil, mas no mundo. (DEBERT, 2003, 2012; FEATHERSTONE; HEPWORTH, 2005; LAMB, 2017)
02
É justamente esse caráter de performance que reitera a hipótese dessa tese de que, na perspectiva dos participantes da pesquisa, o consumo de smartphones amplia as possibilidades de resistência do idoso objeto da política de Envelhecimento Ativo porque viabiliza um novo jogo entre aquilo que se coloca em julgamento (visibilidade) e o que se oculta (bastidores).
03
Sobre aquilo que os participantes da pesquisa tornam visível, observa-se não só o consumo de discursos e condutas alinhadas com o ideal do saudável, mas a aderência às atividades abertas à Terceira Idade por causa da política de Envelhecimento Ativo. Ao aderirem a essas atividades e ao darem visibilidade a elas, os participantes da pesquisa estão produzindo provas de caráter, ou seja, estão produzindo provas de que continuam ocupados mesmo após a aposentadoria, resgatando o senso de utilidade e produtividade que os credenciam como cidadão de São Paulo. Neste sentido, é possível concluir que a diretriz global do Envelhecimento Ativo se presta às moralidades compartilhadas localmente pelos participantes da pesquisa, além de auxiliá-los no cumprimento delas na velhice.
04
Por último, concluo que o projeto da Telemedicina 2.0 e do empoderamento para autonomia na gestão da velhice via consumo de smartphones não se concretiza para os participantes da pesquisa. Isso porque o uso de aplicativos de monitoramento, a busca por informações médicas e a formação de comunidades para troca e doação de informações de saúde são inviabilizados por barreiras de adoção de tecnologia, por questões de escolaridade e literacia digital e pela manutenção da deferência à autoridade médica.
ENTÃO O QUE O CONSUMO DE SMARTPHONES VIABILIZA?
Se esse sistema participativo de saúde centrado no paciente não se concretiza para os participantes da pesquisa, cabe então consolidar o que o consumo de smartphones viabiliza e quais seus impactos para a experiência do envelhecimento em São Paulo.
Para tanto, proponho os apontamentos finais dessa tese.
O primeiro diz respeito à relação paradoxal que se estabelece entre os participantes da pesquisa e seus smartphones, com perdas e ganhos. Essa relação paradoxal é abordada a partir do mito da Caixa de Pandora. A partir dele, faço o segundo apontamento. O idoso ativo é capturado pela esperança de que envelhecer corretamente (ativo, saudável, produtivo) é possível e os smartphones são mobilizados na realização dessa esperança, resultando no surgimento de um Homo resiliens implicado no imperativo de resiliência, quando a recuperação do estado saudável e produtivo se torna também condição humana.