DAS CONCLUSÕES: HOMO RESILIENS
Essa tese elucida como a responsabilidade sobre a saúde e bem-estar é, nas sociedades neoliberais, deslocada do estado para o cidadão. Consequência disso, há a emergência do biocidadão normativo, cuja reputação e identidade passam a ser cunhadas em termos de saúde (WHYTE, 2009). No caso dos idosos, essa biocidadania é consolidada pela política de Envelhecimento Ativo na construção e moralização da figura do idoso ativo convocado a assumir o protagonismo sobre si de maneira a viabilizar sua permanência na sociedade.
Propus que o protagonismo desenhado pela política resulte na imposição da tripla jornada de trabalho:
1) o trabalho empregado no cuidado de si
2) o trabalho de cuidador preferencial de parentes idosos
3) o trabalho orientado para manutenção da atividade produtiva na velhice
Esses trabalhos são mobilizados como provas do comprometimento desses idosos (leia-se caráter) e de sua filiação ao paradigma do Envelhecimento Ativo, sendo uma e outro implicados na reinserção desses idosos na sociedade de todas as idades. Neste sentido, a passagem da posição de ônus para a posição de bônus é a recuperação final demandada pela política do Envelhecimento Ativo. Essa recuperação, de âmbito macro econômico, precisa se realizar, antes, no micro: na recuperação do corpo saudável associado à autonomia e na reabilitação para o trabalho associado à produtividade.
Consequência disto, proponho que a virtude maior do idoso ativo seja a resiliência, ampliada da noção de recuperação e otimização da performance do corpo (ROWE; KAHN, 1997) para o imperativo da recuperação do estado saudável, da produtividade e da posição de bônus para a sociedade.
Desta proposição, concluo que o idoso ativo seja Homo resiliens.
Seu caráter é definido pelo sucesso nas recuperações dele demandadas, mas também pela vontade que emprega na realização desse projeto moralizante de suas condutas.
A BRECHA DA RESILIÊNCIA
Como já argumentei, essa vontade de recuperação do estado saudável e produtivo na velhice é, antes, esperança de que esse ideal seja realizável. Há sempre o risco, porém, de que a esperança venha a sucumbir o próprio objetivo desejado (SWEDBERG, 2016).
Neste caso, ter esperança se torna a ação, substituindo a própria ação de realizar aquilo que se deseja. Desta forma, a manutenção da esperança pode ser empregada para evitar justamente que o objetivo desejado se realize. Considerando essa possibilidade, Swedberg (2016) propõe que a esperança pode ter dois desfechos:
1) conduzir à atividade (realização daquilo que se deseja)
2) ser empregada na manutenção da passividade
As redes sociais e os grupos de WhatsApp permitem tanto um quanto outro desfecho porque dão igual visibilidade àquilo que se deseja realizar (esperança/filiação ao discurso) ou aquilo que se realiza na prática (ação/adoção de hábitos saudáveis).
Para o Homo resiliens, esperança e ação se equivalem como provas de resiliência.
Por conta disso, o âmbito digital viabiliza justamente o palco onde a esperança pode entrar em cena e desempenhar o mesmo papel da ação, enquanto a inatividade se mantém nos bastidores sem comprometer a reputação do idoso ativo.
O âmbito digital é, pois, palco e lastro para o Homo resiliens.
Neste sentido, a partir da observação das táticas adotadas pelos participantes da pesquisa, identifiquei que o consumo de conteúdos associados ao discurso do Envelhecimento Ativo ganha visibilidade nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp e são empregados na performance da identidade do idoso ativo.
Em outras palavras, o consumo desses conteúdos comunica o desejo de envelhecer bem, o que significa a constante recuperação do estado saudável e produtivo. Enquanto isso, os consumos “irresponsáveis” se dão no privado, zona propícia para desvios e resistências e para a desobediência da imposição de “se manter na linha”, para usar a expressão de uma das participantes da pesquisa.
ZONAS DE INVISIBILIDADE: A PERFORMANCE COMO LASTRO
Desta maneira, enquanto no âmbito on-line esses idosos podem performar seu enquadramento no imperativo da resiliência, no âmbito offline, eles se permitem os prazeres e liberdades postergados para a velhice, sem perdas em reputação. É nesta dinâmica que a manutenção da visibilidade do desejo que algo se realize (materializada pelo consumo de representações e discursos) permite o protelamento de sua realização, resultando na possibilidade de passividade.
Entretanto, como observado entre os participantes da pesquisa, essa passividade não é total nem permanente. Apontei, por exemplo, como esses idosos podem ser passivos com relação à atividade física, mas ativos com relação à alimentação. Além disso, essa passividade pode se configurar como uma desobediência pontual ou passageira, como uma pausa entre uma moralidade ou outra que os recoloca em atividade.
ESPAÇO E TEMPO PARA O EXERCÍCIO EFETIVO DA RESILIÊNCIA
De volta à atividade, proponho que o mesmo âmbito digital que é lastro para a passividade seja também lastro para a atividade implicada no exercício efetivo da resiliência. Nesta situação, a função de palco do âmbito digital é acionada não para os consumos irresponsáveis, mas para o ocultamento do corpo físico debilitado de maneira que sua recuperação se dê livre de um flagrante de declínio.
Como observado entre os participantes da pesquisa, a retirada/ausência das atividades presenciais e a concentração das ações/copresença na esfera on-line (publicações, curadorias e interações nas redes sociais e grupos de WhatsApp, por exemplo) é empregada no deslocamento das fragilidades para a zona dos bastidores da performance, onde estão resguardas do julgamento do outro (GOFFMAN, 1990).
Esse outro pode ser:
1) o filho, cujo flagrante da fragilidade pode colocar o pai idoso sob intervenção, restringindo-lhe as liberdades (PACHÁ, 2018)
2) um dos pares para quem esse estado fragilizado se presta à autovalorização a partir dos mecanismos de comparação social (GRAHAM BEAUMONT; KENEALY, 2004)
3) o grupo da Terceira Idade ao qual esse idoso pertence e para quem o flagrante de sua fragilidade aciona o estigma de “velho, velho”
4) a sociedade que recebe esta fragilidade como indicativo da falha moral do idoso no exercício de seu protagonismo já na perspectiva de uma biocidadania (ROSE; NOVAS, 2007).
Como apontado, as redes sociais e principalmente os grupos de WhatsApp viabilizam esse espaço oculto, mas também o tempo necessário para o exercício da resiliência até que o Homo resiliens possa recolocar o corpo recuperado em cena.
Nesses casos, nos bastidores, a esperança (na recuperação) conduz à concretização da ação efetiva (de recuperação).
Enquanto isso, e para que essa recuperação efetiva aconteça sem danos de reputação e no tempo necessário, o idoso ativo ocupa o palco, fazendo, no plano da performance, a manutenção de sua filiação à Terceira Idade. Nesse processo, é também relevante o modo como o WhatsApp viabiliza a comunicação discreta com amigos fiéis que são acionados para auxílio nesse exercício de resiliência, mantendo o momento de fragilidade em segredo de maneira a proteger a reputação de idoso ativo do amigo debilitado.
O HOMO RESILIENS SE CONFINA NO SILÊNCIO
Por conta das táticas de ocultamento dos consumos desviantes e dos corpos debilitados, concluo também que o Homo resiliens se confina no silêncio. Não se trata, entretanto, do pacto social de silêncio em torno da velhice como denunciado por Simone de Beauvoir (2018). Sua obra aborda o tratamento da velhice como um evento inconveniente da vida. Como lembrete de sua brevidade e dos declínios que precedem a morte, o envelhecimento era então silenciado. Além disso, como pontua a autora, os idosos eram vistos como um fardo para a família e para a sociedade.
Nesta perspectiva, a experiência e a sabedoria associadas ao envelhecimento não se mostravam suficientes para compensar a dependência e a inutilidade atribuída aos idosos e Beauvoir fornece diversos exemplos de como, historicamente, em muitas culturas, o fim da vida se impunha como uma experiência de desrespeito e de falta de dignidade. Somado a isso, a autora desafia a construção de que a aposentadoria é um tempo para gozo de liberdade e prazer. E, em seu lugar, elucida as condições de vida miseráveis reservadas aos idosos em sua contemporaneidade. Neste contexto, ela conclui que abordar o tema da velhice seria confrontar a sociedade com uma situação precária a qual, mais cedo ou mais tarde, todos os indivíduos estariam sujeitos. Ademais, se pobreza e abandono são os últimos retornos da vida em sociedade, o flagrante da precariedade da velhice seria a prova irrefutável de que a sociedade falhou como projeto de humanidade.
O silenciamento como experimentado pelo Homo resiliens não é desta ordem.
Como observado no campo de pesquisa, a velhice ganhou a pauta social e a mídia. É verdade que ainda é tratada em alguns momentos de forma caricatural e estigmatizada, caracterizadoras do idadismo. Entretanto, é a construção da velhice como Terceira Idade, enquanto fase de liberdades e realizações, e como projeto possível de autonomia e produtividade, que se torna cada vez mais onipresente, colaborando para a atualização do imaginário da velhice e para a naturalização do Envelhecimento Ativo como forma correta de se envelhecer.
É nessa moralização, que o Homo resiliens se cala.
Trata-se, pois, do silenciamento da dor na coluna, das artrites e artroses, do lapso de memória, do cansaço, da impotência e também dos consumos “irresponsáveis” de que tratei (o sofrimento é físico e/ou moral). Não há espaço para esses declínios e vacilos que já são falhas a serem corrigidas a partir do exercício da resiliência. Neste sentido, os bastidores viabilizados no contraponto com a presença nas redes sociais e grupos de WhatsApp são áreas de respiro e de sobrevivência, onde o Homo resiliens se resguarda de duas mortes súbitas: a morte como idoso ativo e a morte como cidadão de São Paulo. Tanto uma quanto outra decorrem do flagrante da dependência e da inutilidade (em oposição à autonomia e produtividade) que juntas reduzem esses idosos novamente à posição de ônus passível de descarte.
O descarte do dependente e inútil é a entrada para o apontamento final dessa tese.