Introdução

Essa pesquisa elege como tema a moralização da saúde e da velhice nas sociedades neoliberais.

Isso implica cercar como a saúde, de modo geral, e o envelhecimento, de modo particular, vão sendo reconstruídos ao longo do processo de declínio do “capitalismo social” ou do chamado Estado do bem-estar social (welfare state), quando os cuidados com saúde e bem-estar eram direitos universais e dever do Estado (SENNETT, 2006). Nesta transição, acentuada a partir da década de 1980, desenvolve-se como tendência global a noção de “Estado Mínimo” que reconhece o mercado como regulador da economia e imputa aos indivíduos a responsabilidade pela gestão de suas necessidades como cidadãos (SLATER, 2002). Especificamente com relação à saúde, Ribeiro et al. (2001) propõem que, nessa passagem (de Estado de bem-estar social para Estado Mínimo), haja uma inversão na qual a saúde deixa de ser direito do cidadão para se consolidar como um direito do Estado.

Ter a saúde do indivíduo como direito do Estado impõe colocá-lo sob administração.

Neste sentido, a questão da manutenção da saúde passa pela padronização de condutas para um “genérico bem-estar da população” e pela “subjetivação da autorresponsabilização” (SCHRAMM, 2009), construindo uma biossocialidade na qual manter-se saudável e funcional se torna condição para a inclusão social do indivíduo (CALASANTI; KING, 2017; VERAS, 2014; WHITE, 2017). Desta forma, a manutenção da autonomia e da independência – do Estado, da sociedade e, em última instância, da família (KAVEDZIJA, 2015) – passam a ser virtudes desejáveis do cidadão “de bem” sendo implicadas nas moralidades que passam a estruturar uma biocidadania (ROSE; NOVAS, 2007). Consequência disto, desenha-se o ideal de “nação saudável” visando a produtividade, na qual o cidadão se torna o parceiro ativo de um estado já na posição de “facilitador” ou “animador” dos hábitos individuais implicados na responsabilidade de cada um em se manter saudável (ROSE, 2001).

Empreendedores de si mesmos.

Nesta perspectiva, emergem discursos que operam na naturalização do processo de terceirização e de moralização da saúde (NEFF; NAFUS, 2016; WHYTE, 2009) convocando os cidadãos a assumirem o papel de “empreendedores de si mesmos” (SWAN, 2012). Os idosos são particularmente visados por esses discursos, uma vez que são identificados como improdutivos e culpabilizados como o grupo responsável por onerar o Estado e por inviabilizar a economia: primeiro por representarem a faixa etária com maiores demandas de saúde e segundo porque passam a gozar de uma vida mais longa após a aposentadoria, prolongando seu tempo como beneficiários do Estado – argumentos que despontam na urgência da reforma da previdência e da reestruturação de sistemas públicos de saúde no Brasil e no mundo .

Em relatório sobre a projeção da população brasileira, por exemplo, estima-se que em 2060 o percentual populacional de idosos (65 anos ou mais) chegará a 25,5% . Isso representa um contingente de 58,2 milhões de idosos que passarão a representar 1 em cada 4 brasileiros . Essa mudança de perfil demográfico resulta em uma transição epidemiológica quando a mortalidade associada a doenças infecciosas e transmissíveis vem sendo substituída por doenças não-transmissíveis e crônicas, relacionadas ao envelhecimento (BATISTA et al., 2011). Somada à questão da previdência social, a demanda por cuidados relativos a enfermidades mais complexas, custosas e duradouras resulta na necessidade de se discutir novas formas possíveis de se envelhecer em sociedade, a partir de questões que englobam independência, qualidade de vida, inclusão e políticas de prevenção e promoção da saúde (RIBEIRO et al., 2011; VERAS, 2014).

Apesar do envelhecimento populacional no Brasil ser um dos mais rápidos do mundo, os desafios relativos à manutenção da velhice na sociedade ocupam a agenda global, com uma projeção de que teremos 2 bilhões de pessoas acima de 60 anos no mundo em 2050 (BEARD; BLOOM, 2014). Em resposta a essa necessidade, observa-se um processo de reprivatização da velhice (DEBERT, 2012) a partir do desenho de políticas públicas e de discursos moralizantes e prescritivos de um projeto de envelhecimento virtuoso, que convoca o indivíduo para um tipo de velhice promovida como correta e saudável, a qual valoriza a autonomia e a produtividade do indivíduo já na posição de protagonista (CALASANTI; KING, 2017).

Esse protagonismo é dirigido para a adoção de hábitos saudáveis, com ênfase na prevenção, que objetivam o corpo, mas também a seu credenciamento para o trabalho estendido na velhice.

Isso implica, como proposto nesta tese, dois consumos: primeiro, o consumo desses discursos acerca de uma forma correta de envelhecer; segundo, o consumo de tudo aquilo que se oferta para realizar o estilo de vida saudável pautado por eles. O desenvolvimento da Telemedicina 2.0, viabilizada a partir da Web 2.0, do surgimento dos smartphones e dos aplicativos e gadgets para monitoramento, atualiza essas ofertas para gestão da saúde porque estruturam um modelo de saúde participativo, centrado no paciente empoderado pela tecnologia para gestão da saúde. Neste sentido, a Telemedicina 2.0 otimiza o ferramental à disposição do biocidadão, o que implica ampliar as expectativas acerca de seu protagonismo (LUPTON, 2012, 2014; NEFF; NAFUS, 2016; SWAN, 2012).

Esse modelo participativo tem especial aderência ao tema da velhice.

Sua retórica e seu entusiasmo se baseiam justamente nos argumentos de que: 1) o contingente de médicos não acompanhará o crescimento da população idosa
2) o crescimento do contingente aposentado frente à população economicamente ativa resulta em uma inadequação entre recursos e gastos, principalmente aqueles destinados à gestão pública da saúde já sobrecarregada pela transição epidemiológica apontada anteriormente
3) a tecnologia permitiria o acompanhamento de idosos com menor custo e maior eficiência, principalmente no que toca à prevenção de doenças e a assistência em caso de doenças crônicas. (ISTEPANIAN; WOODWARD, 2017; OUDSHOORN, 2011).

Entretanto, o que a Telemedicina 2.0 concretiza não é apenas o acompanhamento de idosos, mas a capacitação deles para um automonitoramento, que não é dirigido exclusivamente a eles, mas enquadra a sociedade por inteiro. É nessa perspectiva que Ruckenstein e Schüll (2017) concluem que a provisão de saúde se consolide como autocuidado – já atualizado na sua possibilidade de realização e expandido naquilo que já vinha sendo construído, no discurso, como moralidade (ROSE; NOVAS, 2007; WHYTE, 2009).

Tendo em vista a relação que se estrutura entre o consumo das tecnologias que fundamentam o sistema participativo da Telemedicina 2.0 e suas consequências para a demanda particular por autocuidado na velhice, elejo como objeto desta tese:

As práticas da velhice mediada pelo consumo de aplicativos de smartphones na cidade de São Paulo, com ênfase sobre as habilidades adquiridas por indivíduos de 50 a 80 anos e sobre seus impactos para a gestão individual da saúde e do envelhecimento na interface dela com os discursos que a constroem como moralidade. Consequência disto, como problema de pesquisa, proponho verificar se e em que medida esses idosos aderem ou resistem, integralmente ou parcialmente, a esses discursos e como os consumos de aplicativos de smartphones contribuem para as táticas empregadas por esses idosos no cotidiano visando a gestão da saúde e do envelhecimento – justifico a escolha etária do objeto e sua nomeação como “idosos” no capítulo Metodologia da tese.

O problema de pesquisa se estrutura a partir da articulação de três partes: “os discursos”, “os consumos de aplicativos de smartphones” e “as táticas empregadas por esses idosos no cotidiano visando a gestão da saúde e do envelhecimento”, sendo estas contextualizadas, como propõe o objeto de pesquisa, em São Paulo – o que implica dizer na interface com uma cultura local.

Essa articulação se presta a acessar, reconhecer e tensionar todos os vetores que resultam na complexa experiência do envelhecimento e que podem ser elucidados desde já a partir daquilo que exemplifico como o paradoxo do assento preferencial.

 

O paradoxo do assento preferencial

Por lei, em São Paulo, pessoas com 60 anos ou mais são elegíveis para uso dos assentos preferenciais em transportes públicos. A partir de uma abordagem qualitativa, é possível apontar para as negociações, contradições e lógicas implicadas no gozo desse direito. Por exemplo, alguns dos participantes da pesquisa consideram o assento preferencial como uma conquista merecida depois de uma vida de trabalho. Para eles, o assento preferencial é símbolo de respeito. Entretanto, se alguém oferece o assento preferencial aos idosos, esta ação não necessariamente denota respeito. Ao contrário, como argumentam alguns dos participantes, o gesto é uma ofensa porque opera no mecanismo do estigma que reduz o idoso àquele cansado ou doente.

Uma das participantes verbaliza como se dá essa ofensa. “Pareço tão velha assim? Sou saudável. Posso ficar de pé”, ela diz.

Além disso, a liberação do assento para um idoso reforça seu caráter de peso para a sociedade produtiva que tem de ceder lugar e abrir espaço para os improdutivos, como discutirei na análise dos documentos e diretrizes internacionais para o envelhecimento. O peso da inatividade é exacerbado ainda mais pela cultura paulistana, e na exaltação do trabalho na constituição identitária da cidade (MARINS, 1999). Por conta disso, o direito ao assento preferencial é relativizado por alguns dos participantes da pesquisa. Nesses casos, quando a pessoa que está ocupando o lugar do idoso está voltando da jornada de trabalho, o idoso pode ceder a “preferência” para aquele que trabalha. Nesse sentido, é possível resgatar como localmente a dignidade está construída sobre a noção de utilidade, com aquele que se mantém produtivo sendo mais digno do que o improdutivo.

 

Além disso, os assentos preferenciais são mobilizados para distinção entre os próprios idosos.

No espaço público, sua utilização sinaliza para eles (e entre eles) quem são os “velhos velhos” – o que para os participantes da pesquisa calha de ser sempre o outro. Como resume um deles, “entra no ônibus, jovem está sentado lá, no lugar do idoso, ele não levanta para dar lugar para idoso. Para mim não, mas para os idosos mesmo. Eu não, que eu vou em pé, mas eu tô um velho legal”. Essa classificação e julgamento estão implicados em um mecanismo de comparação social e autovigilância que é central no desenvolvimento dessa tese. A partir dele, propus que, já na interiorização dos discursos e representações que cunham um ideal de idoso, os participantes da pesquisa se empreguem em uma performance que se dá nos espaços públicos e nas redes sociais.

Essa performance visa uma identidade cunhada em termos de saúde e produtividade, cuja finalidade é resguardar a reputação desses idosos da sociedade, da comunidade e dos pares.

E é sob esse aspecto que o consumo de smartphones se mostra mais impactante para a experiência de envelhecimento. Meu argumento é que os smartphones viabilizem zonas de invisibilidade para as fragilidades e para os declínios do corpo, mas também para os comportamentos desviantes e consumos irresponsáveis que retomam a velhice como fase de realizações e liberdades – ainda que essas passem a ser, como demonstrarei, condicionadas à autonomia e ao sucesso de cada um no exercício da resiliência.
Para dar conta dessa complexidade, fez-se necessária a mobilização de múltiplas metodologias, cujas escolhas foram determinantes do modo como cada um desses vetores foi construído e de como eles se articulam entre si nessa tese.

Essa é a justificativa que apresento para esta brevíssima introdução.

Não é possível introduzir e contextualizar a velhice mediada por smartphones e transpassada por discursos moralizantes como construída nessa pesquisa sem reconhecer que ela foi construída para essa pesquisa. Isso significa elucidar as escolhas metodológicas que resultaram em sua conceituação e aquelas outras que estruturaram sua problematização, permitindo que se chegasse a algumas conclusões e não a outras.

Além disso, trata-se de inserir a autora no mesmo mecanismo que confere aos participantes da pesquisa a ilusão de que são sujeitos-protagonistas das táticas que se convertem em suas experiências individuais de envelhecimento.

A autoria dessa tese é também, nesta perspectiva, ilusão de autonomia, uma vez que essa tomada de palavra se dá a partir de discursos anteriores que fundamentam os campos de saberes aos quais essa pesquisa se filia (PÊCHEUX, 2014). Por conseguinte, abrevio aqui essa introdução e opto pela passagem imediata para o capítulo de metodologia, marco zero dessa pesquisa, para apresentar as escolhas que definiram aquilo que diz essa tese e aquilo que me permitiu dizê-lo da forma como foi dito e de nenhuma outra.